Foi pelos ouvidos de Hugo Ribeiro que aprendemos a ouvir Portugal

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Quando ouvimos Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Carlos Paredes e boa parte da mais importante música portuguesa gravada em Portugal no século XX, estamos quase sempre a fazê-lo pelos ouvidos de Hugo Ribeiro. Hoje, quase com 90 anos, ainda vai ao estúdio todas as semanas.

GONÇALO FROTA
Com público.pt
24/08/2014
"Já gravei em muitos países. Os italianos gravaram-me bem, mas o Hugo Ribeiro, da Valentim de Carvalho, é que grava aquela que eu acho que é a minha voz, aquela que eu oiço.” Fora daquelas paredes impregnadas de história, do estúdio de Paço d’Arcos em que Hugo Ribeiro passou boa parte da sua vida até hoje — e onde regressa ainda todas as semanas, quase aos 89 anos —, os técnicos não sabiam o que fazer às repentinas subidas de Amália Rodrigues que não só arrepiam quem ouve, como disparavam em flecha os ponteiros das mesas de som. “Quando eu canto, com os gritos que dou”, revelaria ainda a fadista ao seu biógrafo Vítor Pavão dos Santos, “aquela agulha, que não deve passar do meio, vem de baixo e passa para o outro lado, para o encarnado. (…) E fica o grito que não é grito, nem coisa nenhuma, sem timbre, nem cor. (…) Só o Ribeiro é que está habituado à minha maneira de cantar.”

“A Amália não era cantora de microfone”, diz Hugo Ribeiro à Revista 2, com a naturalidade de quem, sendo “um amador” — como lhe chama carinhosamente David Ferreira, editor da EMI-VC —, sempre soube pensar para lá dos manuais e inventar soluções práticas para os problemas que se lhe apresentavam. E Amália foi um dos melhores “problemas” que o técnico de som da Valentim de Carvalho teve ao longo da sua carreira. Ribeiro, um sedutor contador de histórias, entusiasma-se de tal forma com o discurso que os seus relatos se tornam uma matéria sinuosa, de verdadeiro prazer do lado de quem fala e do lado de quem escuta. As histórias são tantas que se atropelam e se acotovelam para lhe merecer atenção. Cada facto lembra-lhe, pelo menos, mais dois ou três. É parte do encanto de um homem com um papel crucial na música portuguesa, mas cujos créditos eram frequentemente suprimidos dos discos nos idos anos 50 e 60. “Por esquecimento”, diz , não atribuindo maldade nenhuma à grosseira negligência que era omitir o seu nome da proeza espantosa em que podia transformar-se uma sessão de estúdio.

Amália não era, então, cantora de microfone. Era mulher do povo, do fado, habituada a projectar a voz ao comando das emoções, de olhos fechados para melhor fingir que era noite, pouco dada a minudências tecnicistas de quem cantava com estudos na garganta. Com ela, não havia truques, era uma alma de comportas abertas estimulada pelos poemas que lhe despertavam o canto. Os truques ficavam por conta de Ribeiro — mas truques que, ao invés do que se fazia no exterior, se resumiam a captar a sua interpretação da forma mais natural possível. “Quando gravou em Inglaterra e noutros sítios”, lembra, “os discos vendiam-se muito bem, mas ela é que não gostava de se ouvir. Eles puseram-na a cantar como se fosse uma cançonetista ou uma cantora lírica. Mas a Amália não tinha essa técnica de se afastar e aproximar do microfone, para não saturar o som. Quando era para cantar, fechava os olhos e cantava.”

A técnica usada por Hugo Ribeiro com Amália durante largos anos, e que a cantora nunca descobriu, passava por colocar um microfone desligado diante do qual a fadista cantava pensando que era ali que a sua voz era recolhida. “Se cantasse com força, ela ia para a frente e ainda mais para cima do microfone”, o que resultaria numa voz distorcida ou numa tentativa artificial de a controlar a partir da régie que apenas roubaria o brilho da sua expressão. “Eu punha-a a cantar para esse microfone falso e depois, lá ao fundo, colocava o microfone verdadeiro.”

A diva da canção portuguesa, com quem Hugo Ribeiro gravou álbuns abençoados como Busto ou Com Que Voz, juntando à sua voz a mestria na composição de Alain Oulman, uma selecção primorosa de poesia, as guitarras encantatórias de José Nunes e (sobretudo) Fontes Rocha, e a mão de Hugo Ribeiro e Rui Valentim de Carvalho, nunca desconfiou que cantava para o microfone “errado”. Assim como nunca suspeitou que muitas gravações que tinha mandado apagar por não estar contente com o resultado tinham, afinal, sobrevivido devido a um lúcido acto de desobediência de Hugo Ribeiro. Em vez de eliminar as gravações realizadas entre 1965 e 1975, Ribeiro guardou-as nos arquivos da Valentim de Carvalho por as saber demasiado preciosas. Deixou-as repousar durante anos, até que, certo dia, bateu à porta do número 193 da Rua de São Bento que tão bem conhecia e pediu a Amália que ouvisse a música que levava consigo. Numa altura em que a voz começara já a falhar à cantora (cuja insistência em actuar, diz-se, se devia ao desejo de morrer em palco), Amália ficou de tal forma comovida ao ouvir-se naqueles registos que se agarrou a Ribeiro a chorar, agradecendo que, por uma vez, não lhe tivesse dado ouvidos. O conjunto das gravações ficaria para a história conhecido como Segredo, disco de inéditos lançado em 1997, cujo título se explica a si mesmo.

Trabalho de manhã à noite, domingos e feriados

Nascido há quase 89 anos em Vila Real de Santo António, Hugo Ribeiro faz questão de frisar que, apesar da proximidade da fronteira espanhola, é “bem português”. Com a música presente na sua vida desde cedo, nunca lhe passara sequer pela cabeça que, chegado a Lisboa aos 18 anos, depois de terminado o Curso dos Liceus, a sua caminhada profissional pudesse vir a passar por aí. A sua miragem académica estava, aliás, bem distante. “A minha mania parecia uma mania de malucos”, lembra, divertido com a revelação que se apresta a fazer. “Tinha a mania da meteorologia e possivelmente iria para uma ciência desse género. Isso era o que eu pensava na altura.” Instalando-se na casa de um tio que vivia em Lisboa, seria o primo, director de contabilidade numa firma, e muito amigo de Valentim de Carvalho, a pô-lo em contacto com o fundador da casa onde Hugo Ribeiro construiu toda a sua vida — profissional e pessoal, pois até ali encontrou o seu casamento.

Foi nos mesmos anos 1920 em que Hugo Ribeiro chegou ao mundo que Valentim de Carvalho comprou à família Neupart a casa da Rua Nova do Almada, ao Chiado, dedicada ao comércio de instrumentos musicais e partituras. Assim, o Salão Neupart, fundado pelo musicólogo alemão Eduard Neupart em 1824, transformava-se em Valentim de Carvalho-Salão Neupart. Na montra da loja, numa habilidade comercial de Valentim de Carvalho — “um homem muito inteligente e um grande negociante”, comenta Ribeiro —, a designação Salão Neupart iria mirrando cada vez mais até desaparecer por completo, ao mesmo tempo que a actividade se expandia para venda de discos de 78 rotações, com a representação portuguesa assegurada de algumas das maiores editoras internacionais. Não escondendo a admiração pelo antigo patrão, Hugo Ribeiro conta que “o senhor Valentim, para ver como tudo aquilo funcionava, empregou-se na loja e fez de tudo, até andou a limpar o chão”.

Quando foi levado a conhecer Valentim de Carvalho, o homem que pôs de pé a peça fundamental do arranque da produção fonográfica portuguesa disse-lhe que poderia continuar a estudar. “Mas não podia, era impossível — trabalhava de manhã, de tarde e de noite, domingos e feriados”, recorda não com lástima, mas com o tom de quem ao puxar o fio à meada encontra nesse período o rastilho inicial para o fulgor extraordinário da sua paixão pela música. Atrás do balcão, vendendo partituras — “dos grandes compositores mas também das partes de piano das canções portuguesas, francesas ou italianas” —, o adolescente Ribeiro havia de cruzar-se ainda com alguns antigos funcionários do Salão Neupart. Um deles, já com uma certa idade e uma referência na casa, dada a organização vertical das partituras por ordem alfabética do compositor (do A ao nível do balcão ao Z perto do tecto), informava sempre os clientes interessados em Tchaikovski ou Wagner que as peças em questão se encontravam esgotadas para não ter de se empoleirar no escadote.

Apesar de a área de negócio da Valentim de Carvalho ter chegado a expandir-se para os ferros de engomar, as máquinas de lavar, os frigoríficos e toda a sorte de aparelhos domésticos, a sua aposta seria sempre a música, através de discos e de pianos. “Tínhamos 30 ou 40 pianos alugados”, conta Hugo Ribeiro e vai buscar à memória o mirabolante transporte de um piano, com uma grua, entrando pela janela de um prédio de Alfama. 

Pouco depois de entrar na empresa, Hugo Ribeiro havia de apaixonar-se por uma das empregadas da loja. “Era natural que houvesse namoros, porque os empregados eram rapazes novos e as raparigas também eram novinhas e algumas muito bonitas”, comenta. Sabendo, porém, que o patrão torcia o nariz às relações entre funcionários e, “à antiga”, mandava as raparigas para casa serem mulheres de família, Ribeiro escondeu durante cinco anos o seu namoro com Natália, uma das vendedoras da secção de discos.

Ao fim de cinco anos, em 1952, decidiu anunciar ao senhor Valentim que pretendia casar-se com uma funcionária da loja. “Sim senhor, enganaste-me”, reconheceu o patrão. “Conseguiste namorar a Natália estes anos todos e eu nunca soube. Portanto, a tua mulher pode ficar cá.” E premiou-o ainda com uma generosa quantia como prenda de casamento. Natália pôde então continuar a vender discos, território em que o marido pouco se metia. Salvo excepções, como acontecia com o cirurgião Francisco Pulido Valente, por ordem expressa de Valentim de Carvalho: “Olhe que ele é muito seu amigo, é melhor ser o Ribeiro a atender.” “Os grandes médicos de Lisboa eram todos clientes do Valentim de Carvalho”, refere com visível orgulho. “O professor Pulido Valente nunca gastava menos de sete contos em discos, principalmente música clássica e ópera. Fui eu quem o começou a atender por acaso, mas depois ficámos muito amigos.” Possivelmente, por terem descoberto na ópera um amor comum, que Ribeiro tentava sempre alimentar com idas ao Teatro São Carlos.

Os discos de 78 rotações (anteriores ao vinil) chegavam regularmente de Inglaterra, por mar, em carregamentos mensais de 500 a mil cópias e vendiam-se então a 35$ por unidade, valor que era avultado para qualquer empregado da loja, tornando os fonogramas produtos ao alcance só de carteiras abonadas. Nessa altura, antes de a Valentim de Carvalho passar a fabricar os seus próprios discos, Hugo Ribeiro ia com outros colegas da casa e um representante dos seguros até à alfândega abrir as caixas que traziam grupos de 25 discos, cuidadosamente embalados para resistirem à viagem de barco. “Só que os discos eram muito quebradiços, uma espécie de loiça”, diz. O problema, no entanto, era que por vezes as caixas eram abertas a bordo, alguns exemplares eram roubados e, dessa forma, o acolchoamento que fora pensado ao milímetro colocava repentinamente os discos à mercê do balanço provocado pela ondulação. No final da década de 40, a Valentim de Carvalho abria a sua fábrica de 78 rotações no Campo Grande.